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Vítor Bastos, Cólera Morbus, 1856, baixo-relevo, gesso patinado 128,5 × 102 cm
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2020-04-21
da epidemia em Lisboa - Cesário Verde
I
Foi quando em dois Verões,
seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na
cidade,
Que esta população, com um
terror de lebre,
Fugiu da capital como da
tempestade.
Ora, meu pai, depois das
nossas vidas salvas,
(Até então nós só tivéramos
sarampo),
Tanto nos viu crescer entre
os montões das malvas
Que ele ganhou por isso um
grande amor ao campo!
Se acaso o conta, ainda a
fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o
dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os
outros inquilinos
Morreram todos. Nós
salvámo-nos na fuga.
Na parte mercantil, foco da
epidemia,
Um pânico! Nem um navio
entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma
loja abria,
E os turbulentos cais
cessaram a algazarra.
Pela manhã, em vez dos trens
dos batizados,
Rodavam sem cessar as seges
dos enterros.
Que triste a sucessão dos
armazéns fechados!
Como um domingo inglês na «city»,
que desterros!
Sem canalização, em muitos
burgos ermos,
Secavam dejeções cobertas de
mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos
padres e coveiros,
Os
últimos fiéis, tremiam dos enfermos!
Uma iluminação a azeite de
purgueira,
De noite, amarelava os
prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam;
de maneira
Que tinham tons de inferno
outros arruamentos.
Porém, lá fora, à solta,
exageradamente,
Enquanto acontecia essa
calamidade,
Toda a vegetação, pletórica,
potente,
Ganhava imenso com a enorme
mortandade!
Num ímpeto de seiva os
arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as
novidades todas,
Como uma universal
celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve
soberbos partos.
Por isso, o chefe antigo e
bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em
órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o
horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois
das grandes chuvas.
Ele, dum lado, via os filhos
achacados,
Um lívido flagelo e uma
moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras,
lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um
lucro na vivenda!
E o campo, desde então,
segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos
estes anos!
Nós vamos para lá; somos
provincianos,
Desde
o calor de Maio aos frios de Novembro!
Cesário
Verde, «Nós», Poesia completa 1855-1886,
Lisboa, Dom Quixote, pp.139-141
2020-04-17
representações da epidemia
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Domenico Gargiulo dito Micco Spadaro, Largo Mercatello em Nápoles durante a peste de 1656, 1656, in https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Piazza_Mercatello_durante_la_peste_del_1656_-_Spadaro.jpg
(consultado em 17.04.2020)
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dos culpados
Os
culpados potenciais, sobre os quais pode voltar-se a agressividade coletiva,
são em primeiro lugar os estrangeiros, os viajantes, os marginais e todos
aqueles que não estão bem integrados a uma comunidade, seja porque não querem aceitar
suas crenças – é o caso dos judeus –, seja porque foi preciso, por evidentes
razões, isolá-los para a periferia do grupo – como os leprosos –, seja simplesmente
porque vêm de outros lugares e por esse motivo são em alguma medida suspeitos.
[…]
Não podendo
os judeus constituir-se nos únicos bodes expiatórios, foi preciso, como indica
Jean de Venette, procurar outros culpados, de preferência os estrangeiros. Em
1596-1599, os espanhóis do norte da Península Ibérica estão convencidos da
origem flamenga da epidemia que os acomete. Ela foi trazida, acredita-se, pelos
navios vindos dos Países Baixos. Na Lorena, em 1627, a peste é qualificada de “húngara”
e em 1636, de “sueca”, em Toulouse, em 1630, fala-se da “peste de Milão”.
Jean
Delumeau; História do medo no Ocidente:
1300-1800, uma cidade sitiada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990: pp.140-141
Do distanciamento social
Cortados
do resto do mundo, os habitantes afastam-se uns dos outros no próprio interior
da cidade maldita, temendo contaminar-se mutuamente. Evita-se abrir as janelas
da casa e descer à rua. As pessoas esforçam-se em resistir, fechadas em casa,
com as reservas que se pôde acumular. Se assim mesmo é preciso sair para
comprar o indispensável, impõem-se precauções. Fregueses e vendedores de artigos
de primeira necessidade só se cumprimentam a distância e colocam entre si o
espaço de um largo balcão. Em Milão, em 1630, alguns só se aventuram na rua
armados de uma pistola graças à qual manterão a distância qualquer pessoa
suscetível de ser contagiosa. Os sequestros forçados acrescentam-se ao
encerramento voluntário para reforçar o vazio e o silêncio da cidade.
Jean
Delumeau; História do medo no Ocidente:
1300-1800, uma cidade sitiada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990: p.122
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