2012-01-20

acordes de leitura 14 josé luís peixoto



José Luís Peixoto nasceu a 4 de Setembro de 1974 em Galveias, Ponte de Sor. Autor de uma já vasta obra, em 2001, recebeu o Prémio Literário José Saramago com o romance Nenhum Olhar. Uma informação atualizada sobre o escritor pode ser vista neste blogue.

José Luís Peixoto
morreste-me
(Edições portuguesas: 1ª edição - Maio de 2000, edição de autor; 3ª edição - Fev. 2002, Temas e Debates)

Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e maresia distante fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos falavam alto e o mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como se continuasse. O silêncio fluvial, a vida cruel por ser vida. Como no hospital. Dizia nunca esquecerei, e hoje lembro-me. Rostos tornados desconhecidos, desfigurados na minha certeza de perder-te, no meu desespero desespero. Como no hospital. Não acredito que possas ter esquecido. Enquanto esperava pela minha mãe e pela minha irmã, as pessoas passavam por mim como se a dor que me enchia não fosse oceânica e não as abarcasse também. As mulheres falavam, os homens fumavam cigarros. Como eu, esperavam; não a morte, que nós, seres incautos, fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se não a virmos, ela não nos verá. Esperavam. Num carro demasiado rápido, a minha mãe, curvada de perder o que possuía, e a minha irmã. Os homens e as mulheres falavam e fumavam ainda quando subimos. No quarto, numa cama qualquer que não a tua, o teu corpo, pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e amarelado, respiravas ofegante. O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o seu caminho rouco. Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha. Aos pés da cama, a minha mãe calada, viúva de tudo. À cabeceira, a minha irmã, eu. Cortinas de plástico, biombos de banheira separavam-nos das outras camas. Pousei-te as mãos nos ombros fracos. Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda pele viva. E menti-te. Disse aquilo em que não acreditava. Ao olhar amarelo, ofegante, disse que tudo serias e seríamos de novo. E menti-te. Disse vamos voltar para casa, pai; vamos que eu guio a carrinha, pai; só enquanto não puder, pai; vá, agora está fraco mas depois, pai, depois, pai. Menti-te. E tu, sincero, a dizeres apenas um olhar suplicante, um olhar para eu nunca mais esquecer. Pai. À hora, mandaram-nos sair. Quando saímos, agarrados como náufragos, a luz abundante bebia-nos.

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