Era um cão que tinha um marinheiro. O
cão perguntou à esposa, que se pode fazer de um marinheiro? Põe-se de guarda ao
jardim, respondeu ela. – Não se deve deixar um marinheiro à solta no jardim,
que fica perto do mar. Um marinheiro é uma criatura derivada por sufixação, e
pode recear-se o poder do elemento base: o radical mar. Em vez de guardar o
jardim, ele acabaria por fugir para o mar. – Deixá-lo fugir, disse a esposa do
cão. Mas ele não estava de acordo. Que um facto deveria ser esse mesmo facto
até ao limite do possível: quem possui um marinheiro para guardar o jardim deve
procurar mantê-lo a todo o custo, assim como o cão, ou o casal de cães, que não
tiver um marinheiro deve não tê-lo até a isso ser absolutamente forçado. –
Nesse caso, só nos resta ir para uma terra do interior, longe do mar, disse a
cadela. E então foram para o interior, levando pela trela o marinheiro
açaimado. Durante o percurso viram muitas paisagens. O marinheiro estava
espantado com as paisagens que podem existir longe do mar. Fez diversas
observações a esse respeito, provocando o risonho latido dos cães que, pela sua
parte, concordavam em que tinham um marinheiro muito inteligente. – Nem todos
os cães têm a nossa sorte, disse o cão, pois conheço vários cães que são donos
de vários marinheiros estúpidos. Iam por isso bastante contentes e diziam, a
outros cães com quem se cruzavam, que possuíam um marinheiro invulgarmente
esperto. – Ele tem uma filosofia das paisagens, dizia o cão. Um cão da Estrela,
que encontraram naturalmente perto da Serra da Estrela, perguntou-lhes se o
marinheiro gostava de sardinhas. – Adora-as, respondeu a cadela. – Isso não me
admira nada, disse o indígena. E na verdade não parecia admirado. Quando
chegaram ao mais interior possível, alugaram uma casa com um jardim e puseram o
marinheiro a guardá-lo. – Guarda-o, disseram. Deixaram-lhe ao lado uma dúzia de
latas de sardinhas e foram para dentro de casa. Durante sete dias e sete
noites, o marinheiro refletiu sobre as paisagens do interior e comeu as
sardinhas de conserva. Depois foi atacado de esgana, e começou a andar em
círculos cada vez mais apertados no meio do jardim. Os cães observavam-no da
janela e viam que o seu marinheiro perdia as forças a cada volta. Um dia, ao
anoitecer, caiu para o lado resfolegando. – O mar, ouviram-no dizer. Então
foram para dentro, e dormiram. De manhã vieram cedo ao jardim e verificaram que
o marinheiro estava morto. – Era um marinheiro tão esperto, disse a cadela. –
Pois era, disse o cão, foi pena. E enterraram o marinheiro debaixo de uma
acácia. Mas como já se haviam habituado à vida do interior, não regressaram ao
litoral. Nunca mais tiveram marinheiros. – Para quê?, dizia a cadela, ralações
já existem de sobra. E quem se atreve a negar que ela tinha razão?
Herberto Hélder, Os Passos em Volta, 9.ªed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, pp.125-127
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