De como el-rei despejou a cidade e mandou meter nela
muito gado
Capítulo
CXIX
E sendo já feitas muitas e grandes despesas para as
ditas festas e as mais
principais, por a muita gente que vinha de muitas partes e de Lisboa onde
morriam, em Évora ouve rebates de peste.
De que el-rei foi muito triste porque se mais mal
fosse, as festas se não poderiam fazer com aquela perfeição que ele tinha
ordenado. E por ver se poderia atalhar isto com que a todos tanto pesava,
acordou com conselho dos físicos, que antes do antrelunho de Setembro, em que
os ares corruptos tinham mais força, toda a gente da cidade e da corte se saísse
dela, como logo saiu por espaço de quinze dias. Nos quais el-rei andou fora pelas
Alcáçovas e Viana, e esteve na quintã da Oliveira, onde a primeira vez justou,
e a gente toda por quintas, herdades, e hortas, e em tendas no campo.
E a cidade foi
cheia de infindo gado vacum sem conto, que de toda a comarca veio e por mandado
d' el-rei aí foi trazido, e nela dormia de noite e o metiam ao sol-posto, e já
bem de dia o levavam seus donos a comer fora. E porque todas as fazendas dos
cortesãos e moradores ficavam dentro na cidade em suas casas e pousadas sem
levarem mais que camas e mesas, houve aí grandes guardas, homens de fiança e recado
na cidade repartidos pelas ruas, e assim fora dos muros, para que ninguém pudesse
entrar nem sair, muitos cavaleiros da guarda que a roldava com que tudo esteve
tão seguro, que se não achou menos cousa alguma de quanto na cidade ficou, nem
somente fechadura de porta com que se bulisse.
E acabados os quinze dias o gado todo se levou e a
cidade foi toda muito limpa e todas as ruas e casas defumadas e caiadas antes
d' el-rei entrar nela. E assim no antrelunho de Outubro depois da gente estar
dentro, el-rei mandou que todo os escravos e negros que na cidade havia, se saíssem
fora por dez dias sob pena de se perderem e assim se fez. E por estas
grandes diligências, e principalmente pela piedade de Deus a quem se fizeram
juntamente com isso muitas devações e esmolas, a cidade ficou de todo sã, de
que el-rei e todos foram muito alegres por se poder fazer nela o que estava
ordenado.
Garcia de Resende, Vida e
feitos d' el-rey dom João Segundo
Texto da edição crítica
preparada por Evelina Verdelho
Centro de estudos de Linguística
Geral e Aplicada (CELGA) Faculdade de Letras Universidade de Coimbra 2007, in
(consultado em 02.04.2020), adaptado, ortografia atualizada.
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