– Que a paz e a estupidez sejam
contigo. Vens preparado para a operação?
– Que operação? – interrogou João Sem
Medo, suspeitoso.
O descabeçado, de cigarrilha na boca
do estômago, expôs-lhe então com paciência burocrática:
– Ninguém pode seguir o caminho
asfaltado que leva à Felicidade Completa sem se sujeitar a este programa bem
óbvio. Primeiro: consentir que lhe cortem a cabeça para não pensar, não ter
opinião nem criar piolhos ou ideias perigosas. Segundo e último: trazer nos pés
e nas mãos correntes de ouro…
João Sem Medo ouriçou-se numa reação
instintiva:
– Nunca! Bem se vê que não tens a
cabeça no seu lugar.
– Realizada esta
insignificante intervenção cirúrgica – prosseguiu o monstro, imperturbável –,
ninguém te impedirá de gozar o resto da vida na boa da pândega e da abastança.
E tudo de graça. Porque quem não tem cabeça não paga nada.
Esta gracinha parva ainda convenceu
mais o nosso herói a obstinar-se na recusa:
– Não, nunca. Então prefiro o outro
caminho.
– Palerma! – lamurinhou o guarda com
os olhos do peito marejados de lágrimas sinceras. Vais passar fome, sofrer dias
de terror aflito…
– Deixá-lo. Prefiro tudo a viver sem
cabeça. Nem calculas a falta que ela me faz.
– Não te faz falta nenhuma –
contrariou o monstro, que acrescentou este comentário imbecil: – Pelo
contrário: evitas o trabalho de ir ao cabeleireiro de quinze em quinze dias.
Mas ante uma careta de João Sem Medo
apressou-se a afrouxar-lhe a cólera com esta proposta:
– Ainda tens talvez outra hipótese.
Invocar o parágrafo 100 do artigo 4579 do Regulamento Interno e requerer a
concessão que todos os Homens de Representação Pública costumam obter
automaticamente em virtude das exigências estéticas do seu cargo. Isto é: em
certos casos especiais, os cirurgiões, em vez de degolarem os felizardos,
sugam-lhes os cérebros por palhinhas, deixando a casca por fora intacta, para
inglês ver… Oh!, espera, espera! Não te vás embora ainda. Escuta. Também podes
requerer a substituição da cabeça. Por uma melancia, por exemplo. Ou uma bola
de futebol que é o enxerto mais vulgar. Ou uma bolinha de ténis que fica sempre
tão bem nas pessoas finas, elegantes, esbeltas… Espera. Ouve.
in José Gomes Ferreira, Aventuras
de João Sem Medo, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991, pp.18-20
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