ra uma vez um homem de nome Luís a quem
faltava a vista esquerda, que permaneceu no Cais de Alcântara três ou quatro
semanas pelo menos, sentado em cima do caixão do pai, à espera que o resto da
bagagem aportasse no navio seguinte. Dera aos estivadores, a um sargento
português bêbedo e aos empregados da alfândega a escritura da casa e o dinheiro
que trazia, vira-os içar o frigorífico, o fogão e o Chevrolet antigo, de motor
delirante, para uma nau que aparelhava já, mas recusou separar-se da urna
apesar das ordens de um major gorducho (Você nem sonhe que leva essa gaita
consigo), um féretro de pegas lavradas e crucifixo no tampo, arrastado
tombadilho fora perante o pasmo do comandante que se esqueceu do nónio e
levantou a cabeça, tonta de cálculos, para olhá-lo, no momento em que o homem
de nome Luís desaparecia no porão e encaixava o morto sob o beliche, como os
restantes passageiros faziam aos cestos e às malas. Depois estendeu-se no
cobertor, poisou a nuca nas palmas e entreteve-se a seguir o crochet meticuloso
das aranhas e o cio dos ratos nas vigas do teto cobertas de caranguejos e
percebes, sonhando com os braços noturnos das negras carecidas. Ao segundo
almoço conheceu um reformado amante de biscas e suecas e um maneta espanhol que
vendia cautelas em Moçambique chamado Dom Miguel de Cervantes Saavedra, antigo
soldado sempre a escrever em folhas soltas de agenda e papéis desprezados um
romance intitulado, não se entendia porquê, de Quixote, quando toda a gente
sabe que Quixote é apelido de cavalo de obstáculos, e ao fim da tarde puxavam o
caixão e batiam trunfos lambidos no tampo de verniz, evitando tocar no
crucifixo porque dá azar às vazas e altera as manilhas, e erguendo os sapatos
de fivela sempre que os balanços do barco derramavam na sua direção o vomitado
dos vizinhos, que adquirira um palmo de altura e os obrigava, de meias
ensopadas, a agarrarem-se às pegas a fim de que o cadáver não lhes escapasse, à
deriva num caldo em que flutuavam lavagantes, transportando consigo os valetes
e os ases da partida decisiva.
O homem de nome
Luís habitava com o pai no Cazenga quando uma patrulha disparou sobre o velho,
de forma que assim que os amigos do dominó lho trouxeram embrulhado em rasgões
de lençol, só com uma madeixa de cabelo ruço de fora, o deixaram na toalha do
jantar, em cima dos talheres e dos pratos, e se foram a discutir um dobre de
seis, desceu o beco até à agência funerária que uma granada rebentara, entrou
pelos vidros estilhaçados da montra e escolheu uma urna no meio das muitas que sobejavam
na loja porque os corpos se decompunham nas praças e nas ruas sem que ninguém
se afligisse com eles, salvo os cachorros vagabundos e os ladrões de farrapos.
in António Lobo Antunes, As
Naus, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988, pp.19-21
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