2021-02-25

Da importância da medicina

 

Em situação de epidemia, a medicina é chamada e, mesmo em tempos recuados, o poder político pede a opinião aos médicos. É o caso do rei de França, Filipe VI, que pede um parecer à Faculdade de Medicina de Paris, que torna público, em 1348, no auge da Peste Negra, um Compendium de Epidemia.

E mesmo no século XIV, numa época em que a medicina ainda é muito incipiente, o médico da corte papal de Avinhão, Guy de Chaulliac, reconheceu «a existência das duas formas de doença, a pulmonar e a bubónica».De qualquer modo, a medicina ainda não tinha condições de encontrar uma cura para a Peste Negra. Os remédios principais que são aplicados individualmente são a flebotomia [sangria] e os cautérios [queima] aplicados aos bubões, bem como algumas prescrições farmacológicas. A maior parte das prescrições […] é de tipo preventivo. O conselho de fugir à primeira manifestação da epidemia e de só regressar quando terminasse era apenas uma das formas extremas. No plano coletivo, tentam-se formas ainda insuficientes de isolamento das doentes e das mercadorias provenientes das zonas suspeitas e tomam-se medidas de limpeza viradas para a purificação dos «ares» corruptos.

Maria Conforti, «A Peste Negra» in Idade Média – Castelos, mercadores e poetas, dir. Umberto Eco, Alfragilde: Dom Quixote, 2014, p.538

2021-02-22

Do não acreditar na doença

 Com um ano de pandemia, já vimos um pouco de tudo. E do que vemos hoje muito já nos foi contado pela História. por exemplo, Jean Delumeau na sua História do Medo no Ocidente, conta-nos da incredulidade dos parisienses face à epidemia de cólera que grassava em Paris em 1832, a partir de um testemunho contemporâneo:

Como era a terceira quinta-feira da quaresma, como fazia um belo sol e um tempo encantador, os parisienses agitavam-se com tanto mais jovialidade nos bulevares, onde se viram até máscaras que, parodiando a cor doentia e a figura desfeita, zombavam do temor do cólera e da própria doença. Na noite do mesmo dia, os bailes públicos foram mais frequentados do que nunca: os risos mais presunçosos quase encobriam a música brilhante; as pessoas excitavam-se muito com o chahut, dança mais que equívoca; devorava-se toda a espécie de sorvetes e de bebidas frias quando, de súbito, o mais alegre dos arlequins sentiu demasiado frescor nas pernas, tirou a máscara e revelou para espanto de todo mundo um rosto de azul violeta.

in Jean Delumeau, História do Medo no Ocidente 1300-1800 uma cidade sitiada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.119

2021-02-16

Do toque dos sinos, Miguel Torga

 

Voltamos, neste novo confinamento, a textos que se relacionam com epidemias.

Em Novos contos da montanha, Miguel Torga mostra-nos um jovem a recuperar da doença (a pneumónica, ou gripe espanhola) que terá provocado mais de 100 000 óbitos no nosso país. O conto começa assim:

 

 

«– A Lucinda? – perguntou o Pedro, coberto de suor, lívido, a acabar de sair de uma modorra de morte.

– Está boa… – respondeu a mãe, com a naturalidade que pôde.

– E por que não vem cá?

– Isto pega-se, filho. Ela bem queria; eu é que não consinto…

Uma onda de tristeza, que lhe embaciou a imagem da namorada, atravessou os olhos febris do rapaz. Depois, exausto do esforço de vir à tona do poço, desceu as pálpebras e caiu na sonolência em que vivia há dias.

No princípio da epidemia, de ouvido atento, ia vigiando o mundo através do dobrar do sino. O som a entrar no quarto abafado e ele a inquirir inquieto:

– Quem foi, minha mãe?

– O Belmiro.

– O pai ou o filho?

– O pai.»

Miguel Torga, «Renovo», Novos contos da montanha, in Contos, 5.ª edição conjunta, Alfragilde, Dom Quixote, 2009, p.453