Metralhadoras cantam
Acenderam-se as armas pela noite dentro.
Quem rebenta? Quem morre? Quem vive? Quem berra?
Há um vento de lamentos nos lamentos do vento.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cantam granadas a canção da morte.
E há uma rosa de sangue à flor da terra.
Morrer ou não morrer é uma questão de sorte.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cantam bazucas e morteiros e estilhaços
cantam esta canção do aço que não erra
no espaço do seu fogo o espaço entre dois braços.
Cantam metralhadoras a canção da guerra.
Há um tiro que parte. Há um corpo que tomba.
Nesta boca fechada há um morto que berra.
Quem estoira no meu peito: o coração? Uma bomba?
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Todo o tempo é uma batalha. Ataque. Fuga.
Fuga. Ataque. Silêncio. Um silêncio que aterra.
Que marca o rosto com seu peso ruga a ruga.
Um silêncio que canta na canção da guerra.
Mina.emboscada. Pó. Pólvora. Sangue. Fogo.
Acerta não acerta? Erra não erra?
Perdeu todo o sentido dizer-se até logo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cada segundo pode ser o último segundo.
Como enterrar os mortos que a memória desenterra?
Há um poço tão fundo tão fundo tão fundo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Há um soldado que grita eu não quero morrer.
E o sangue corre gota a gota sobre a terra.
Vai morrer a gritar eu não quero morrer.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Houve um que se deitou e disse: Até amanhã.
Mas amanhã é o dia que se enterra
o soldado que disse: Até amanhã.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
E um jipe corre pela noite dentro.
Avança não avança? Emperra não emperra?
Passam balas de chumbo nas balas do vento.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
E há duzentos quilómetros de morte
em duzentos quilómetros de terra.
Neste caminho de Luanda para o Norte
metralhadoras cantam a canção da guerra.
Manuel Alegre, O canto e as armas (1967), Poesia, primeiro volume (1960-90), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, pp. 126-128
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