2022-10-17

#lerparaapaz MIBE 2022 -10

 


Metralhadoras cantam

 

Acenderam-se as armas pela noite dentro.

Quem rebenta? Quem morre? Quem vive? Quem berra?

Há um vento de lamentos nos lamentos do vento.

Metralhadoras cantam a canção da guerra.

 

Cantam granadas a canção da morte.

E há uma rosa de sangue à flor da terra.

Morrer ou não morrer é uma questão de sorte.

Metralhadoras cantam a canção da guerra.

 

Cantam bazucas e morteiros e estilhaços

cantam esta canção do aço que não erra

no espaço do seu fogo o espaço entre dois braços.

Cantam  metralhadoras a canção da guerra.

 

Há um tiro que parte. Há um corpo que tomba.

Nesta boca fechada há um morto que berra.

Quem estoira no meu peito: o coração? Uma bomba?

Metralhadoras cantam a canção da guerra.

 

Todo o tempo é uma batalha. Ataque. Fuga.

Fuga. Ataque. Silêncio. Um silêncio que aterra.

Que marca o rosto com seu peso ruga a ruga.

Um silêncio que canta na canção da guerra.

 

Mina.emboscada. Pó. Pólvora. Sangue. Fogo.

Acerta não acerta? Erra não erra?

Perdeu todo o sentido dizer-se até logo.

Metralhadoras cantam a canção da guerra.

 

Cada segundo pode ser o último segundo.

Como enterrar os mortos que a memória desenterra?

Há um poço tão fundo tão fundo tão fundo.

Metralhadoras cantam a canção da guerra.

 

Há um soldado que grita eu não quero morrer.

E o sangue corre gota a gota sobre a terra.

Vai morrer a gritar eu não quero morrer.

Metralhadoras cantam a canção da guerra.

 

Houve um que se deitou e disse: Até amanhã.

Mas amanhã é o dia que se enterra

o soldado que disse: Até amanhã.

Metralhadoras cantam a canção da guerra.

 

E um jipe corre pela noite dentro.

Avança não avança? Emperra não emperra?

Passam balas de chumbo nas balas do vento.

Metralhadoras cantam a canção da guerra.

 

E há duzentos quilómetros de morte

em duzentos quilómetros de terra.

Neste caminho de Luanda para o Norte

metralhadoras cantam a canção da guerra.

 

Manuel Alegre,  O canto e as armas (1967), Poesia, primeiro volume (1960-90), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, pp. 126-128

Sem comentários:

Enviar um comentário