Literatura pela paz, os textos não deixam de nos falar sobre a guerra, das suas consequências trágicas, dos seus absurdos. São, assim, conteúdos úteis para serem usados como trabalho em aula, mas também aquilo que nunca deixam de ser: espaços para a reflexão individual e para a fruição da qualidade que deles emana.
2023-05-30
Textos para a paz
2022-10-31
#lerparaapaz, MIBE 2022 - 20
Na biblioteca da escola depois da guerra
Ao entrar sinto a cara a arder:
montes de livros, migalhas de cultura e de beleza
juncam o chão como espigas calcadas
após a passagem de um brutal furacão.
A poeira da guerra veio pousar nos lábios
dos homens de génio. Vozes incorruptíveis
a troar por cima do espaço e do tempo.
Mas incapazes de esmagar as botas do fantasma.
Apanho o livro pouco espesso furado
Por uma bala. A chaga é horrível.
Todas as folhas estão manchadas de sangue.
Abro. Leio. Não posso reter as lágrimas
quando o título vem dançar diante dos meus olhos:
«Os sonetos sangrentos de Hviezdoslav».
Julius Lenko (1941-1991), in A rosa do mundo 2001 poemas para o futuro, (dir edit. Manuel Hermínio Monteiro) Lisboa: Assírio e Alvim, 2001, pp.1547-1548
Nos 32 poemas que compõem Os Sonetos Sangrentos (1914), o poeta eslovaco Pavol Országh Hviezdoslav pergunta quem é o responsável pelos horrores e sofrimentos da guerra, revelando também esperança de que a humanidade aprenda a viver em paz.
http://relvateresa.blogspot.com/2021/03/os-sonetos-sangrentos-de-hviezdoslav.html
Concluímos com este poema de um poeta eslovaco a nossa proposta de textos para a paz. Afinal , a maioria fala da guerra. Sim, é a guerra que nos faz falar da paz.
2022-10-27
#lerparaapaz, MIBE 2022- 18
Recitativo do requiem para os caídos da Europa (1917)
Quero queixar-me dos homens no exílio do seu tempo;
Queixar-me das mulheres de coração jubilante, agora a gritar num lamento;
Quero acumular e repetir todos os queixumes
De viúvas apertando-se em corpetes impacientes, no crepitar de lumes;
Ouço crianças de loira voz que antes de irem para a cama perguntam por Deus- -Pai;
Em todos os frisos vejo retratos com hera, sorrindo fiéis ao tempo que já lá vai;
De todas as janelas ardem para pétreos longes olhares de raparigas abandonadas;
Em todos os jardins se cultivam sécias, como se já as campas tivessem de ser [preparadas;
Em todas as ruas os carros se movem mais lentos, como num enterro;
Em todas as cidades tocam mais forte os sinos, porque há sempre mais um que às [balas tombou em qualquer cerro;
Em todos os corações há um lamento
E em cada dia o oiço mais violento.
Iwan Goll, «Recitativo do requiem para os caídos da Europa (1917)», Expressionismo alemão, antologia poética, (org. João Barrento), Lisboa: Ática [sd, 1976], p.83
2022-10-26
#lerparaapaz MIBE 2022 -17
O carro de assalto e o camião como os animais pesados e corpulentos da selva, búfalos e rinocerontes. A metralhadora como um mexerico que ceifa muitas vidas de uma só vez? Ou a espingarda, a arma calma e pessoal, a extensão do poder do homem. Não poderão estar todos relacionados?
E, pelo contrário, em combate, os homens estão mais próximos da natureza das máquinas que da natureza humana. Uma tese plausível e aceitável. Os combates são organizações de milhares de homens-máquinas a deslocarem-se com movimentos preordenados através de um campo, a suarem como um radiador ao sol, a estremecerem e a tornarem-se rígidos como um pedaço de metal à chuva. Já não nos encontramos assim tão distantes das máquinas. Consigo vislumbrar isso no meu próprio pensamento. Já deixámos de adicionar maçãs e cavalos. Uma máquina vale tantos homens. A marinha levou isso a um requinte maior do que o exército. Os países cujos líderes aspiram a igualar-se a Deus fazem a apoteose da máquina.
Norman Mailer, Os nus e os mortos (1948),Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008, p.561
2022-10-25
#lerparaapaz MIBE 2022 - 16
Parecia que a guerra desalojara a Stalinegrado antiga. Era fácil imaginar como os oficiais alemães saíam das caves, como o marechal de campo andava ao longo destas paredes cobertas de fuligem e as sentinelas se endireitavam à vista dele. Mas seria possível imaginar que foi ali que Aleksandra Vladimirovna comprou fazenda para um sobretudo, o relógio que dera a Marússia no seu dia de anos, que viera ali com Serioja e, na secção de desporto, no primeiro andar, lhe comprara patins?
Provavelmente, é a mesma impressão estranha que têm aqueles que vão visitar Malákhov Kurgan, Verdun, o campo de Borodinó - ver criança, mulheres que lavam a roupa, uma carroça carregada de feno, um velho com um ancinho... Aqui, onde são as vinhas, andaram colunas de poilus, andaram camiões cobertos de lona; lá, onde agora é uma isbá, pasta o gado magro kolkhoziano e há macieiras, passara a cavalaria de Murat; deste sítio, Kutúzov, sentado na poltrona, com um gesto da mão senil, lançava ao ataque a infantaria russa. Em cima do kurgan, onde as galinhas e as cabras poeirentas estão a pastar nas ervas entre as pedras, o almirante Nakhímov esteve parado, daqui voaram as bombas luminosas descritas por Tolstói, aqui os feridos gritavam, as balas inglesas assobiavam.
Vassili Grossman, Vida e destino (c.1961), Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2011, pp.844-845
2022-10-24
#lerparaapaz, MIBE 2022 - 15
A rosa de Hiroshima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa sem cirrose
A anti-rosa atómica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
Vinicius de Morais, Antologia poética, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p.299
2022-10-21
#lerparaapaz MIBE 2022 -14
Ele rodava a cadeira, frente para trás. De quando em enquanto se escutavam tiros, rajadas de metralhadora.Já nem nos alarmávamos. Lá fora havia o matraquear da morte, lamentos de vidas que se apagavam. Para nós, porém, aquele ruído, era já parte da paisagem. Ficava, contudo, um amargo escorrendo naquelas paredes. Nosso assunto se engasgou. Comentei sobre a eternidade que demorava a guerra. Assane discordou:
- Nem isto guerra nenhuma não é. isto é alguma coisa que ainda não tem nome.
Se explicou: antes fosse uma guerra a sério. Se assim fosse teria feito crescer o exército. Mas uma guerra-fantasma faz crescer um exército fantasma, salteado, desnorteado, temido por todos e mandado por ninguém. E nós próprios, indiscriminadas vítimas, nos íamos convertendo em fantasmas.
- No fundo da latrina não pode haver guerra limpa.
Mia Couto, Terra sonâmbula, Lisboa, Caminho, 1998, p.121
2022-10-20
#lerparaapaz MIBE 22- 13
Um dia, chegou um homem à aldeia, ferido, com a roupa em farrapos sanguinolentos. Suplicou para o esconderem. Eles nem tiveram tempo para pensar no que fazer. Apareceram soldados, quatro ao todo, pegaram no homem, empurraram-no para uma árvore, uma rajada atordoou os pássaros e as gentes. Enterrem-no, mandaram. E foram embora pelo caminho de onde vieram, sem mesmo beberem água. Enterraram o homem, iam fazer mais como então? Durante dias lamentaram o morto, enterrado sem xinguilamento nem choro de familiares, sem bebida deitada nos caminhos para orientar o espírito. Muitas teorias foram criadas sobre a origem do finado e as causas da sua morte, todas sem comprovação. E temiam que o espírito injustiçado rondasse perto e eles pagassem pelo que não fizeram. Tantas outras coisas sucederam entretanto que foram esquecendo, mesmo o local da sepultura. A Muari não esqueceu, por vezes murmurava, podia ter sido um dos meus filhos.
Pepetela, Parábola do cágado velho (1997), Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2016, p.37
2022-10-18
#lerparaapaz MIBE 2022 -11
Em Mangando e Marimbanguengo, vi a miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções espojado pela mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu mastro idêntica a um pénis sem força, vi homens de vinte anos sentados à sombra, em silêncio, como os velhos nos parques, e disse ao furriel miliciano, que desinfectava o joelho com tintura, É impossível que um dia destes não tenhamos uma merdósia qualquer, porque, sabe como é, quando homens de vinte anos se sentam assim à sombra, num tão completo desamparo, algo de inesperado, e estranho, e trágico acontece sempre, até que me vieram informar do rádio Um tipo deu um tiro em Mangando, e eu corri para o carro onde a escolta me aguardava a aprontar-se ainda, e seguimos aos saltos para o norte pela picada que a chuva destruíra.
António Lobo Antunes, Os cus de Judas, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994, p. 199
2022-10-17
#lerparaapaz MIBE 2022 -10
Metralhadoras cantam
Acenderam-se as armas pela noite dentro.
Quem rebenta? Quem morre? Quem vive? Quem berra?
Há um vento de lamentos nos lamentos do vento.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cantam granadas a canção da morte.
E há uma rosa de sangue à flor da terra.
Morrer ou não morrer é uma questão de sorte.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cantam bazucas e morteiros e estilhaços
cantam esta canção do aço que não erra
no espaço do seu fogo o espaço entre dois braços.
Cantam metralhadoras a canção da guerra.
Há um tiro que parte. Há um corpo que tomba.
Nesta boca fechada há um morto que berra.
Quem estoira no meu peito: o coração? Uma bomba?
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Todo o tempo é uma batalha. Ataque. Fuga.
Fuga. Ataque. Silêncio. Um silêncio que aterra.
Que marca o rosto com seu peso ruga a ruga.
Um silêncio que canta na canção da guerra.
Mina.emboscada. Pó. Pólvora. Sangue. Fogo.
Acerta não acerta? Erra não erra?
Perdeu todo o sentido dizer-se até logo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cada segundo pode ser o último segundo.
Como enterrar os mortos que a memória desenterra?
Há um poço tão fundo tão fundo tão fundo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Há um soldado que grita eu não quero morrer.
E o sangue corre gota a gota sobre a terra.
Vai morrer a gritar eu não quero morrer.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Houve um que se deitou e disse: Até amanhã.
Mas amanhã é o dia que se enterra
o soldado que disse: Até amanhã.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
E um jipe corre pela noite dentro.
Avança não avança? Emperra não emperra?
Passam balas de chumbo nas balas do vento.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
E há duzentos quilómetros de morte
em duzentos quilómetros de terra.
Neste caminho de Luanda para o Norte
metralhadoras cantam a canção da guerra.
Manuel Alegre, O canto e as armas (1967), Poesia, primeiro volume (1960-90), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, pp. 126-128
2022-10-13
# Ler para a paz (MIBE 2022) - 8
Ela olha para ele demoradamente como se não percebesse o sentido das palavras. Depois agarra na mochila, esquadrinha dentro dela e tira uma pequena carteira castanha. Abre-a sem olhar e estende-a a Avram. Dentro de uma bolsinha de plástico está a fotografia de dois rapazes abraçados. Foi tirada no dia da incorporação de Adam. Têm ambos os cabelos compridos e Ofer, jovem e magro, está pendurado no irmão mais velho, envolve-o com o braço e o olhar. Avram contempla. Ora tem a sensação de que todas as feições do seu rosto se agitam descontroladamente.
Avram, diz ela mansamente. Pousa a mão em cima da dele enquanto ele segura na fotografia,estabilizando-a.
Que bonito rapaz, sussurra Avram.
Ora fecha os olhos. Vê as pessoas de pé dos dois lados da rua que conduz a sua casa. Algumas já entraram no pátio, outras estão nas escadas junto à porta. Esperam-na em silêncio, de cabeça baixa. Esperam que ela passe entre eles e entre em casa.
Para que possa começar, pensa ela.
David Grossman, Até ao fim da terra (2007), Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2012, pp.677-678
2022-10-12
#Ler para a paz (MIBE 2022) -7
Um soldado de Lee (1862)
Atingiu-o uma bala na ribeira
De uma clara corrente cujo nome
Ignora. Cai de borco. (É verdadeira
A história e mais de um homem foi esse homem.)
O ar que é de oiro agita as preguiçosas
Folhas desses pinhais. A paciente
Formiga escala o rosto indiferente.
Sobe o sol. Já mudaram muitas coisas
E mudarão ainda até ao dia
Desse futuro incerto em que te canto,
A ti, que, sem a dádiva do pranto,
Caíste como um homem na agonia.
Não há mármore guardando-te a memória;
São seis palmos de terra, a tua glória.
Jorge Luis Borges, «O outro, o mesmo» (1964), Obras completas II 1952-1972, Círculo de Leitores, 1989, p.321