Depois de dois anos de ausência,
devido ao surto de peste na cidade, Dom João III, no final de janeiro de 1527, regressa
a Lisboa, acompanhado pela sua mulher, a rainha Caterina, com quem casara havia
pouco.
Gil Vicente faz um auto que celebra a
entrada dos Reis – a tragicomédia da Nau
d’Amores – que começa com uma princesa
em figura da Cidade de Lixboa a fazer um discurso de boas-vindas. Na fala
desta alegoria de Lisboa a epidemia está presente, no que era uma constante na
vida daquele tempo. A Cidade parece resignada. Nos valores mais altos do autor
e da corte pior que a peste seria a descrença:
ainda que peste me dê muita guerra
Deos seja louvado nos céus e na terra
conheço as causas por que sam ferida. 80
É que de viçosa
de doce de linda de mui abondosa [abundante]
se peste nam fosse todos meus heréus [herdeiros]
nam conheceriam que i havia Deos
que seria peste muito mais perigosa. 85
Deos seja louvado nos céus e na terra
conheço as causas por que sam ferida. 80
É que de viçosa
de doce de linda de mui abondosa [abundante]
se peste nam fosse todos meus heréus [herdeiros]
nam conheceriam que i havia Deos
que seria peste muito mais perigosa. 85
Por isso
me calo e nam desvario
mas antes estimo que Deos é comigo
adoro a ele e recebo o castigo
per onde me mostra o seu poderio.
Porque na verdade 90
nam me tira nada de minha bondade
mas como cidade que quer pera si
mostra-me a morte mil vezes aqui
por que me nam saia de sua vontade.
mas antes estimo que Deos é comigo
adoro a ele e recebo o castigo
per onde me mostra o seu poderio.
Porque na verdade 90
nam me tira nada de minha bondade
mas como cidade que quer pera si
mostra-me a morte mil vezes aqui
por que me nam saia de sua vontade.
Gil Vicente, Nau d’Amores,
146II, vv.77-94, in Centro de Estudos de Teatro, Teatro
de Autores Portugueses do Séc. XVI - Base de dados textual [on-line].
<http://www.cet-e-quinhentos.com/> [07 / 04 / 2020]
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