2020-04-07

da peste e de Deus - Gil Vicente



Depois de dois anos de ausência, devido ao surto de peste na cidade, Dom João III, no final de janeiro de 1527, regressa a Lisboa, acompanhado pela sua mulher, a rainha Caterina, com quem casara havia pouco.
Gil Vicente faz um auto que celebra a entrada dos Reis – a tragicomédia da Nau d’Amores – que começa com uma princesa em figura da Cidade de Lixboa a fazer um discurso de boas-vindas. Na fala desta alegoria de Lisboa a epidemia está presente, no que era uma constante na vida daquele tempo. A Cidade parece resignada. Nos valores mais altos do autor e da corte pior que a peste seria a descrença:   

Assi que mui alta e esclarecida                                                                   

ainda que peste me dê muita guerra
Deos seja louvado nos céus e na terra
conheço as causas por que sam ferida.  
80
É que de viçosa
de doce de linda de mui abondosa [abundante]
se peste nam fosse todos meus heréus [herdeiros]
nam conheceriam que i havia Deos
que seria peste muito mais perigosa.      
85

Por isso me calo e nam desvario
mas antes estimo que Deos é comigo
adoro a ele e recebo o castigo
per onde me mostra o seu poderio.
Porque na verdade                                  
90
nam me tira nada de minha bondade
mas como cidade que quer pera si
mostra-me a morte mil vezes aqui
por que me nam saia de sua vontade.

Gil Vicente, Nau d’Amores, 146II, vv.77-94, in Centro de Estudos de Teatro, Teatro de Autores Portugueses do Séc. XVI - Base de dados textual [on-line].
<http://www.cet-e-quinhentos.com/> [07 / 04 / 2020]

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