Duque Ugolino O que é este bulício? O que estamos a celebrar, amigos?
Boccaccio (Radiante) Esta manhã, Pânfilo saiu como sempre para dar o seu
passeio matinal e teve a maior surpresa da sua vida.
Pânfilo (Fazendo um passe de magia) Os pistoianos, os pratenses, os
milaneses, os sieneses, todos os que rodeavam Florença para que apodrecêssemos
com a pestilência, foram-se embora. Desapareceram, sim. Sim, sim, vossa
senhoria, é como ouvis: retiraram-se.
Boccaccio Já não há mais cerco, levantaram-no. Foram-se embora. Estamos livres.
Pânfilo O que pode significar isso a não ser que terminou a
peste?
Filomena Salvámo-nos, senhor duque! O que esperais? Vinde cantar e
bailar connosco.
Pânfilo Dai-me a mão, juntai-vos à ronda da alegria.
O
duque Ugolino, de má vontade, junta-se à celebração e canta e baila também,
enquanto a condessa de Santa Cruz se mantém a certa distância do grupo,
observando-o com aquela expressão indefinível em que se misturam o ceticismo e
a troça. Um momento depois, o duque Ugolino fica quieto. A forçada expressão de
contentamento que tinha vai-se evaporando do seu rosto.
Duque Ugolino Ser levantado o cerco também poderia significar que já não
haja florentinos que queiram ou possam fugir. Que a peste levou toda a cidade
para o outro mundo e que Florença é agora um cemitério.
Boccaccio Sois como São Tomás, Ugolino: ver para crer. Pânfilo já o fez:
aproximou-se da cidade e ele que vos conte o que viu.
Pânfilo (Louco de felicidade, ouvindo o distante tocar dos sinos) A vida
renasce por todo o lado, senhor duque. As pessoas limpam as ruas, enterram os
seus mortos, lavam os pátios, desinfetam as paredes, em todas as igrejas há
missas e em todos os bairros se organizam procissões de ação de graças. A cidade
revive e esquece a tragédia.
Filomena Não ouvis o repicar dos sinos que ensurdece a manhã, duque
Ugolino?
Boccaccio (Refletindo) Era um ato de puro desespero, um esbracejar de afogado
e, no entanto, funcionou.
Como
todos os seus companheiros o olham intrigados, esclarece-os.
Boccaccio A minha receita dos contos e as mentiras. Aconteceu como eu
disse, embora nem vocês nem eu mesmo acreditássemos. Enganámos a peste,
contando contos livrámo-nos da morte.
Duque Ugolino Pois, se é assim, terminou a vida de mentiras em que temos
estado a viver. Temos de voltar à verdade. Tendes a certeza que o devamos
festejar?
Mario Vargas Llosa, Os contos da peste, Alfragide:
Publicações Dom Quixote, 2016, pp.185-188
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