2020-04-06

da vitória da literatura - Vargas Llosa



Duque Ugolino           O que é este bulício? O que estamos a celebrar, amigos?
Boccaccio (Radiante) Esta manhã, Pânfilo saiu como sempre para dar o seu passeio matinal e teve a maior surpresa da sua vida.
Pânfilo (Fazendo um passe de magia) Os pistoianos, os pratenses, os milaneses, os sieneses, todos os que rodeavam Florença para que apodrecêssemos com a pestilência, foram-se embora. Desapareceram, sim. Sim, sim, vossa senhoria, é como ouvis: retiraram-se.
Boccaccio      Já não há mais cerco, levantaram-no. Foram-se embora. Estamos livres.
Pânfilo          O que pode significar isso a não ser que terminou a peste?
Filomena      Salvámo-nos, senhor duque! O que esperais? Vinde cantar e bailar connosco.
Pânfilo           Dai-me a mão, juntai-vos à ronda da alegria.
O duque Ugolino, de má vontade, junta-se à celebração e canta e baila também, enquanto a condessa de Santa Cruz se mantém a certa distância do grupo, observando-o com aquela expressão indefinível em que se misturam o ceticismo e a troça. Um momento depois, o duque Ugolino fica quieto. A forçada expressão de contentamento que tinha vai-se evaporando do seu rosto.
Duque Ugolino    Ser levantado o cerco também poderia significar que já não haja florentinos que queiram ou possam fugir. Que a peste levou toda a cidade para o outro mundo e que Florença é agora um cemitério.
Boccaccio      Sois como São Tomás, Ugolino: ver para crer. Pânfilo já o fez: aproximou-se da cidade e ele que vos conte o que viu.
Pânfilo (Louco de felicidade, ouvindo o distante tocar dos sinos) A vida renasce por todo o lado, senhor duque. As pessoas limpam as ruas, enterram os seus mortos, lavam os pátios, desinfetam as paredes, em todas as igrejas há missas e em todos os bairros se organizam procissões de ação de graças. A cidade revive e esquece a tragédia.
Filomena       Não ouvis o repicar dos sinos que ensurdece a manhã, duque Ugolino?
Boccaccio (Refletindo) Era um ato de puro desespero, um esbracejar de afogado e, no entanto, funcionou.
Como todos os seus companheiros o olham intrigados, esclarece-os.  
Boccaccio    A minha receita dos contos e as mentiras. Aconteceu como eu disse, embora nem vocês nem eu mesmo acreditássemos. Enganámos a peste, contando contos livrámo-nos da morte.
Duque Ugolino     Pois, se é assim, terminou a vida de mentiras em que temos estado a viver. Temos de voltar à verdade. Tendes a certeza que o devamos festejar?

Mario Vargas Llosa, Os contos da peste, Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2016, pp.185-188

Sem comentários:

Enviar um comentário