2020-04-04

De canhão contra a peste - Garcia Márquez



A cólera tornou-se numa obsessão. Dela não sabia muito mais do que aprendera na rotina de algum curso marginal, e parecia-lhe inverosímil que apenas trinta anos antes tivesse causado em França, inclusive em Paris, mais de cento e quarenta mil mortos. Mas depois da morte do pai aprendeu tudo quanto se devia aprender sobre os diversos tipos de cólera, quase como uma penitência para apaziguar a sua memória, e foi aluno do epidemiólogo mais destacado do seu tempo e criador dos cordões sanitários, o professor Adrien Proust, pai do grande escritor. De modo que quando regressou à sua terra e sentiu, ainda no mar, a pestilência do mercado e viu as ratazanas nos esgotos e os garotos nus a chapinhar nos charcos das ruas, não só compreendeu que a desgraça tivesse ocorrido como teve a certeza de que se repetiria a qualquer momento.
Não passou muito tempo. Em menos de um ano os seus alunos do Hospital da Misericórdia pediram-lhe que os ajudasse com um doente, recolhido por esmola, que tinha uma estranha coloração azul em todo o corpo. Ao doutor Juvenal Urbino bastou vê-lo da porta para reconhecer o inimigo. Mas teve sorte: o doente tinha chegado três dias antes numa escuna de Curaçau e tinha ido à consulta externa do hospital pelos seus próprios meios, não parecendo provável que tivesse contagiado alguém. Em todo o caso, o doutor Juvenal Urbino preveniu os seus colegas, conseguiu que as autoridades dessem o alarme nos portos vizinhos para que localizassem a escuna contaminada e a pusessem de quarentena, e teve que moderar o chefe militar da praça que queria decretar a lei marcial e aplicar imediatamente a terapêutica dos tiros de canhão de quarto em quarto de hora.
– Economize a sua pólvora para quando vierem os liberais – disse-lhe de bom humor. – Já não estamos na Idade Média.
Gabriel Garcia Márquez, O amor nos tempos de cólera, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, pp.126-127

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