E, durante todo esse tempo, seguia a
pista do vergonhoso segredo que a cidade guardava cuidadosamente no seu seio
tal como ele guardava o seu próprio segredo – e tudo o que conseguia saber
alimentava a sua paixão com esperanças vagas e ilegais. Folheava jornais pelos
cafés tentando encontrar uma reportagem do progresso da doença, e nas folhas
alemãs, que tinham deixado de aparecer no hotel, encontro séries de relatórios
contraditórios. As mortes variavam entre vinte, quarenta, cem, ou mais: e no
jornal do dia seguinte a existência da peste era, se não rotundamente negada,
pelo menos reduzida a alguns casos esporádicos que num porto de mar se
justificavam. Depois disso, as prevenções vociferavam de novo, assim como os
protestos contra o jogo pouco escrupuloso das autoridades.
E o nosso solitário sentiu que era uma
espécie de cúmplice desse segredo; sentia uma fantástica satisfação em fazer
perguntas a pessoas interessadas nele e em as obrigar a mentir descaradamente,
negando tudo. Um dia atacou o gerente, esse homenzinho de passos ligeiros e sobrecasaca
francesa, que se movia por entre os hóspedes durante o almoço supervisando o
serviço e fazendo-se socialmente agradável. Ele parou junto da mesa de Aschenbach
para trocar uma saudação, e o hóspede perguntou-lhe, com um ar negligente e
casual: – Por que razão estão sempre a desinfetar a cidade de Veneza? – Uma ordem
da Polícia – respondeu ele habilmente – como medida de precaução para proteger
a saúde pública durante este tempo ardente. – Muito digna de louvor a Polícia –
respondeu Aschenbach gravemente.
Thomas
Mann, «Morte em Veneza», Os melhores
contos de Thomas Mann, Lisboa; Arcádia, 1966, pp.74-75
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